terça-feira, 27 de dezembro de 2016

A defesa da vaquejada na contramão progressista



A decisão do Supremo Tribunal Federal, que julgou inconstitucional a Lei 15.299/13 do Estado do Ceará que regulamentava a vaquejada, vem gerando manifestações de pessoas que enxergam o mundo em diferentes perspectivas. Uma, em especial, causa estranheza: aquela que advoga ser progressista em relação ao direito dos vulneráveis, mas que ignora, por completo, o sofrimento animal.
Deveras, soa absolutamente contraditório lutar contra o discurso de dominação de uns sobre outros e, ao mesmo tempo, eleger aqueles que merecem ter seus direitos reconhecidos intrinsicamente. Defender minorias é mais simples e conveniente quando a exploração dos oprimidos não nos afeta. Difícil é sair da zona de comodismo e admitir que somos os responsáveis pelo holocausto imposto diariamente aos habitantes da Terra, humanos e não-humanos.
Nós, animais humanos, em um arroubo de arrogância, classificamos, juridicamente, todas as milhares de espécies animais como “coisas”. Elegemos apenas nós mesmos como os únicos seres do planeta dignos de direitos; todo o “resto” pode ser usado e abusado por nós.
Tentado amenizar – o que acaba por corroborá-la (já que não faz qualquer sentido relacionar crueldade com coisa e coisa com crueldade) – a disfunção cognitiva do sistema jurídico, vedamos práticas que submetam os animais à crueldade (art. 225, § 1º, VII, CF). Essa importante prescrição da Lei Maior, primeira na história constitucional brasileira, reconhece algo que se revela axiomático: animais não humanos são seres sencientes, eis que, obviamente, somente quem pode sofrer física e mentalmente é passível de – e por isso a vedação – receber tratamento cruel.

A óbvia crueldade com os animais


Talvez o mero comparecimento, descompromissado com o sofrimento animal, ao evento não seja o bastante para perceber o evidente: a vaquejada é cruel aos animais, seja em relação aos bovinos, seja em relação aos equinos usados na prática. Se algumas constatações não são suficientes, tais como presumir a dor do bovino ao ter bruscamente seu rabo (continuação de sua coluna vertebral e parte sensível de seu corpo) tracionado, sua queda necessariamente com as quatro patas para cima, sua fuga em disparada (algo não natural à espécie), há provas em abundância da crueldade.
Basta, a propósito, ler o voto do Ministro Luis Roberto Barroso, que citou estudo realizado no Hospital Veterinário da Universidade Federal de Campina Grande, no qual se constatou as afecções traumáticas sofridas pelos cavalos usados na vaquejada; o laudo técnico emitido pela Professora Titular da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade São Paulo, a Mestre e Doutora Irvênia Luiza de Santis Prada, no qual se constata os traumas sofridos pelos animais; o posicionamento do Conselho Federal de Medicina Veterinária, contrário à vaquejada, em razão da crueldade intrínseca aos animais.
Ainda que para um radical antropocêntrico tais provas e constatações não sejam suficientes para demonstrar os maus tratos, talvez nem o mais extremista deles consiga deixar de afirmar que ao menos dúvidas levantam. Já é suficiente para a proibição. Não sejamos convenientemente tão generosos com nós mesmos e levianos com os outros: se há risco de uma prática causar sofrimento a outrem, ainda que esse outrem não pertença a nossa espécie, tal prática deve ser rechaçada.
A perspectiva progressista, por coerência, não reduz o outro a uma importância meramente econômica, como se a dignidade pudesse ser anulada em função da capacidade de produção econômica do indivíduo.
Da mesma forma, progressistas não compreendem a cultura como uma simples reiteração de condutas, sem qualquer conteúdo caráter axiológico e que venha a permitir a exploração. Sabem que a cultura deve ser combatida quando ela for utilizada como forma de inferiorização do outro, como ocorre na cultura do racismo e do machismo.  
Aquele que se diz progressista confere grande importância ao valor igualdade, consciente que as diferenças que nos separam não são mais valiosas que semelhanças que nos unem. Não compactua, assim, com a possibilidade de discriminações arbitrárias serem utilizadas como instrumento de legitimação de desconsideração dos legítimos interesses do outro.
Por outro lado, o respeito à diferença é percebido pela ótica da liberdade de o indivíduo viver da forma como sua natureza (seja ela psíquica ou biológica) o forjou, refutando a instrumentalização da diferença para fins de proselitismo ideológico.
Por fim, a perspectiva progressista não naturaliza violências praticadas contra grupos vulneráveis da sociedade, denunciando construções sociais voltadas à manutenção de situações injustas, muitas vezes defendidas, de modo reacionário, como ocorrências meramente naturais.
É de causar estranheza, portanto, como diversos atores de cunho progressista se revelem defensores da vaquejada, prática cruel aos animais usados e abusados nela, desconsiderando o sofrimento de seres extremamente vulneráveis em relação ao homem, que, em virtude de sua capacidade cognitiva mais sofisticada, deveria utilizá-la para fins sublimes e não como salvo-conduto para explorar.
Ignoram, por completo, o interesse natural do outro (não sofrer e viver conforme cunhado pelo longo e vagaroso processo evolutivo), com supedâneo em uma circunstância arbitrária, qual seja, não pertencer à espécie humana, olvidando-se das nossas essenciais semelhanças com os animais, mormente o interesse em não ser submetido a sofrimento físico e mental. Coadunam com a exploração perpetrada contra seres ideologicamente inferiorizados, utilizando como argumentos aspectos econômicos e culturais que não aceitariam, com razão, se um humano fosse o explorado.
Contraditório, assim, que indivíduos progressistas, que dedicam boa parte de sua vida a luar contra o egoísmo que acaba por causar injustiça a tantas pessoas, acabem por, ao defender a vaquejada, olhar apenas para o próprio umbigo antropocêntrico.

O argumento da Vaquejada enquanto cultura


Em relação ao argumento “cultura”, sabemos que não é apto a legitimar a prática, sobretudo quando utilizado para camuflar atos que inflijam a um grupo qualquer tipo de padecimento, seja psíquico ou físico. Lembremo-nos, por exemplo, que, há 128 anos, escravizar negros era algo cultural, e que mulheres não votavam no País até 3 de maio de 1933.
Assim, é certo que uma atividade praticada de maneira reiterada, passada de geração a geração, em um determinado local por um determinado povo, não é legítima por si só. A prática cultural que será digna de merecimento da proteção estatal não prescinde de uma exegese valorativa.
Se assim não fosse, a cultura do racismo, do machismo e da violência, entre outras, seria passível de acolhimento estatal, através de sua elevação ao patamar de patrimônio cultural imaterial, o que não faria qualquer sentido. Impende ser perscrutado, portanto, se a prática passa pelo crivo de todos os valores constitucionais, pois, caso não passe, não merecerá o agasalho estatal, mas sim sua repulsa.
Sendo a prática reiterada, passada de geração a geração, cruel em face dos animais, ou seja, contrária à Constituição da República, deve o Estado repeli-la, independentemente da região onde seja realizada. Nesse mesmo diapasão, a propósito, o Supremo Tribunal Federal, ao rechaçar a vaquejada, foi coerente com seus precedentes nos quais repeliu a “farra do boi” (RE 133531), praticada em Santa Catarina, e rinhas de galo (ADI 1856, ADI 2895 e 2514-7), reguladas por leis do Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Norte.
Além disso, o Poder Judiciário vem, dentro da construção do processo civilizatório, proibindo diversas práticas, tidas como faticamente culturais, como as “carreiras do boi cangado” (TJRS – AC: 70049939663, 2013), provas de laços em rodeio (TJSP, Apelação 0164600-97.2007.8.26.0000, Data do julgamento: 10/07/2008, Agravo de Instrumento nº 2143128-59.2014.8.26.0000. 27/11/2014), a própria vaquejada (TJSP, ADI 2146983-12.2015.8.26.0000, 2015, e TJDF – AGI: 20150020054969, 2015), animais em circo (TJSP, 0195941-44.2007.8.26.0000, 2012) e etc.
A crueldade intrínseca a tais práticas alicerçou a proibição estatal, independentemente do Estado ou região onde foram praticadas. Geralmente, argumentos de ordem econômica, cultural e, por incrível que pareça, proteção aos animais, foram utilizados na tentativa de legitimação da crueldade, sendo, no caso do julgamento recente do Supremo Tribunal Federal em relação à vaquejada, inovador a alegação de preconceito regional.
Se outras práticas, tais como, entre outras, hipismo, jogo de pólo e “fábricas” de animais de estimação, não respeitam – e no caso dos exemplos não respeitam mesmo – a regra constitucional da vedação dos animais à crueldade, cabe ao indivíduo, consciente e sensível ao sofrimento físico e mental dos animais, combatê-las e não apenas se valer dessas crueldades como instrumento de pura retórica.
Se auto-arvorar na condição de defensor do povo nordestino em uma questão desse jaez não deixa de, contraditoriamente, ser desrespeitoso com o a população oriunda do nordeste brasileiro, na medida em que se olvida de boa parcela dela contrária à prática da vaquejada. Além disso, deixa-se seduzir pelo populismo barato, aquele que não atinge a questão (no caso, preconceito contra os nordestinos) que pretensamente diz atacar e não sensibiliza o oprimido a realmente compreender sua condição de subjugado e a não aspirar a se tornar subjugador.  
É fato, ainda, ser as pessoas oriundas do nordeste brasileiro vítimas de preconceito e esquecimento estatal histórico. No entanto, a defesa da vaquejada em nada colabora para modificar tal quadro, no sentido de não se voltar contra as reais causas delas e ainda utilizar indiretamente como bode expiatório seres altamente discriminados pelos humanos.
Assim, é inaceitável evocar a cultura ou a economia como justificativa à prática de atos arbitrários em face de interesses igualmente passíveis da tutela estatal. Impor sofrimento a um ser em busca de prazer momentâneo é moralmente reprovável, sobretudo porque, no caso da vaquejada, sabemos que não é o peão quem lucrará com a prática, mas poderosos empresários que muitas vezes se utilizam não só da escravidão não-humana, mas também da humana.
É preciso expandir os horizontes morais da humanidade por meio da conscientização de que ser contrário à ideologia de dominação não admite exceções; onde há sofrimento, ali deve haver indignação. Eleger aqueles por quem se luta é arbitrário e contraditório. O objetivo dos inconformados é sempre o mesmo: desconstruir a crença de que alguns podem subjugar outros, sejam humanos ou não-humanos.  
Fernanda Orsomarzo é juíza de direito no Paraná. Vegetariana há 8 anos. Tem por ideal viver a magistratura fora do gabinete, na busca por uma cultura de alteridade, respeito às minorias e livre da exploração de animais humanos e não-humanos. É pós-graduada em direito penal, pós-graduanda em filosofia e direitos humanos pela PUC-PR e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia).
Sandro Cavalcanti Rollo é Juiz de Direito no Estado de São Paulo. Ex-promotor de Justiça do Estado do Tocantins e Ex-promotor de Justiça do Estado do Paraná. Mestre em processo penal pela PUC-SP. Co-autor das obras: o projeto do novo Código de Processo Penal, Ed. Podivm, Bahia: 2012; Magistratura Estadual. Questões Comentadas. Estratégias de Estudo. Ed. Saraiva. São Paulo: 2014; Direitos Fundamentais das Pessoas em Situação de Rua, Ed. D´Plácido, Belo Horizonte: 2014 (vencedor do prêmio Jabuti 2015); Temas Contemporâneos de Direito de Família. Ed. STS. São Paulo: 2015. 

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